Smartia's Story


Esta é uma obra de ficção escrita por mim e palpitada pelos GMs para as atividades de DCS2/RPG de Smartia, no Second Life ( http://slurl.com/secondlife/Quiet%20Storm/128/128/90 ). Apenas os nomes dos avatares são reais. Incorporará ainda crônicas nas quais se desenvolverá a história. Qualquer semelhança com fatos, nomes locais ou datas é coincidência ok? (uia, sempre quis dizer isso:-)  
Ari Collas
Todos os direitos reservados.


Oh wonder! How many goodly creatures are there here! (...) Oh brave new world!  (Miranda, em A Tempestade, de Shakespeare, citada por Aldous Huxley em seu Admirável Mundo Novo)


Adam Smart
Adam não se sentia totalmente integrado. Os questionamentos do arqueólogo urbano lhe renderam anotações e percebia que as pessoas o tratavam com certa reserva. Mas não podia condená-las por isso. Todos, inclusive ele, entendiam a necessidade de estar atento, mas ainda assim se sentia incomodado. Achava que seu departamento já tivera dias menos sonolentos... Havia recuperado os bancos de dados mais importantes e restavam apenas servidores menores, e certamente, informações de discutível relevância.  Mesmo assim preferia trabalho de campo. Apesar dos questionamentos, que ele cada vez mais guardava para si, Adam sabia que fazia parte de algo importante. Recuperar milênios de história lhe parecia essencial. A possibilidade de entender aquelas pessoas, quem foram, o que pensavam, era o que lhe movia, mesmo sabendo que elas haviam destruído o mundo como o conheceram, e que em nome das liberdades individuais quase tudo se perdeu.  

Durante as Atribulações a queda da internet foi um dos episódios mais desesperadores. Um dispositivo maroto deletou em dias os bancos de dados, mesmo os mais protegidos. A rede simplesmente derreteu, dando inicio ao caos digital e econômico. A guerra pairava sombria. Acusações mutuas, bancarrotas, suicídios... No ápice dessa crise, uma gripe aparentemente inofensiva começou a ceifar vidas de forma surpreendemente rápida. Uma vacina foi criada, mas a convulsão social comprometeu sua produção e distribuição. Apenas parte da rede escolar, algumas clinicas e instalações militares, isso nos maiores centros urbanos, receberam as doses. Em meses os habitantes do planeta foram reduzidos um bilhão. A confusão institucional levou o que restou das estruturas de poder a instaurar um estado de exceção, que foi o embrião de Universia. Conceitos como nação, pátria e religião perderam o sentido diante da necessidade de se restabelecer a ordem. Foram tempos difíceis... 

Mas a tempestade passou. Os sobreviventes abandonaram os velhos centros e construíram as 100 Urbes. Uma assembléia de representantes se reuniu em torno do primeiro Mentor. A humanidade deixou pra trás as mazelas da guerra e da fome... A expectativa de vida é de 120 anos e o risco de superpopulação sucumbiu ao planejamento. Toda a cultura foi catalogada e disponibilizada na Nova Web. Uma sociedade renovada, concisa, onde o individual jamais se sobrepujará ao coletivo. Essas foram as soluções encontradas para a sobrevivência, e lhe pareciam acertadas, mas ainda assim...

Ari Collas
“Só um sujeito simples. Entrei pra dar uma olhada e resolvi ficar. Dominante, viajante e amante de história” se lia em seu perfil no SL. Depois de um breve período clubber descobriu os prims. Obcecado, ano após ano aprimorou sua cria: a SmartHome, uma skyhome multiscene. Vivia assim, pouca socialização, muito trabalho, no comando de um condomínio virtual. Por suas próprias palavras, só um sujeito...

Tank
Vivia em Itapeva, a 280 km de SP, terra de minérios, cânions, trilhas e cachoeiras. Uma das cidades mais antigas do estado, 100k habitantes, algumas faculdades e uma universidade. Graduado em direito, era conciliador arbitral quando conheceu o SL. Nas horas vagas, músico de boteco. Os negócios de seu avatar Ari começaram a lhe render uns trocados e o SL virou o trabalho. Emprestou ao seu AV muita coisa, muita coisa recebeu. Era feliz.

KingsHand Resident
Apareceu um dia, assistiu aos vídeos-tutoriais e alugou uma Smart sozinho. Nunca falou no grupo, não socializava, mas estava sempre lá. Alguma coisa ali aguçou os sentidos de Ari, uma sensação conhecida! Jamais se intrometia nos assuntos dos residentes, mas monitorava scripts e atividades incomuns, afinal, precisava proteger sua cria. Fora alvo de spys desde o inicio da Smart. Isso até o envaidecia. Lembrava-se de seu próprio início, intrigado, atento, procurando entender todas aquelas criações interessantes. Por um tempo, durante as manutenções, procurava por scripts e objetos de Kings, mas nunca havia nada.

Campo
Toda missão o excitava. Deixar o conforto da Urbe, respirar aquele ar... Assim que o transporte saía do cinturão agrícola Adam colava à janela. O verde predominava, mas ruínas ainda eram visíveis. A divisão de arqueologia urbana é a ponta de lança da reciclagem das velhas cidades. Vem após a primeira varredura dos bots e recupera os pontos de interesse, liberando a área à engenharia.  
Universia preservou algumas centenas de cidades, alguns destinos turísticos, de retiro ou coorporativos e levantou as Urbes, complexos urbanos idênticos e sustentáveis, para exatos dez milhões de habitantes, em áreas criteriosamente escolhidas para amenizar os efeitos de fenômenos naturais. Boa parte do planeta já se refizera e a visão daquilo lhe agradava. Praticamente não distinguia mais as estradas. As outrora gloriosas veias pulsantes de impérios reduzidas a nada por um nerd da inversão magnética...   
O aviso de desembarque o despertou dos devaneios. O destino era 400 km ao sul da Urbe 32, 233 km sudoeste da antiga São Paulo, uma cidade chamada Itapeva, pedra chata, no tupi-guarani. Diferente das ultimas missões, essa tinha um projeto de interesse. Era uma região forte na produção de madeira. Renovável e de baixo impacto, madeira cultivada é valorizada em Universia, símbolo de convivência sustentável com o planeta. 

Uma tese de mestrado era o alvo prioritário. O transporte sobrevoava florestas de eucaliptus e pinus, ainda predominantes, em cujas sombras pouco ou nada crescia. Também extensas áreas de mata nativa, onde javalis e búfalos, ambos exóticos, abriam clareiras. A natureza ali fora generosa.  A cidade fica no limite de duas formações geológicas distintas, passando de extensas áreas de topografia mansa aos morros do vale do Ribeira. Os procedimentos de pouso começaram. Surpreendentemente as torres da igreja central ainda estavam de pé, antigas como a cidade, que passava por um período de forte desenvolvimento econômico e turístico ao tempo das atribulações. Os nanobots levariam no mínimo três anos para completar a tarefa ali, lentos e precisos, um misto de cupins e formigas cibernéticos buscando os materiais indicados, triturando e depositando nos transportes, provendo Universia e limpando o lixo das gerações passadas.

  A área de desembarque e os alojamentos haviam sido preparados há semanas na praça central e alojariam 12 pesquisadores e 34 escoltas, mais as equipes de apoio. Por aproximadamente trinta dias, duas equipes maiores varreriam cartórios, hospitais, empresas, instalações públicas e escolas, em busca de dados. A primeira varredura dos bots era por celulose, o que os livrava do material impresso. Duas outras equipes cobririam instituições de ensino superior, cabendo a Adam, um assistente e duas escoltas localizarem o projeto de interesse, o que, lamentavelmente, levaria apenas um ou dois dias. Ele regressaria então à Urbe e apenas voltaria a campo ao final da missão para monitorar os registros e acompanhar a reciclagem dos originais. 

Nos alojamentos espartanos ele se sentia em casa e mal via a hora de explorar o lugar. Um café quente e eles já estavam no transporte. Do alto se via a inscrição, UNESP, permeada pela vegetação. Nuvens de andorinhas que haviam escolhido ali pra se refazerem de sua migração anual, cederam o lugar, não sem antes lhes proporcionarem uma cena barulhenta. As incursões às ruínas se tornavam mais raras e as escoltas andavam relaxadas, atendo-se menos às recuperações e mais aos riscos da missão. E eles existiam.  As ruínas de uma cidade não são exatamente um lugar seguro. A natureza encontra caminhos, rompe pavimentos, derruba prédios, rasga o asfalto. Espécimes introduzidos equivocadamente e sem inimigos naturais tornaram-se predadores soberanos. E havia desabamentos... As escoltas realizaram uma varredura, localizaram o CPD e voltaram ao transporte. O local estava relativamente bem conservado. As estruturas ainda não haviam sido comprometidas e mesmo alguns vidros estavam intactos. Tudo a partir dali seria registrado. A porta estava destrancada, mas a passagem, obstruída. Uma das escoltas forçou e entrou ao som conhecido, de estalar de ossos. O cenário era quase sempre lúgubre, estavam habituados. Quatro montes ali, ossos, cabelos e tecidos. Invariavelmente os encontravam em posição fetal, traço marcante daquela que ficou conhecida como a gripe do sono. Muitos nem perceberam o que se passava. Manifestados os sintomas, caíam num sonolento torpor, buscando posição fetal para morrer minutos depois. Ironicamente o evento mais contundente da história da raça humana se manifestara tranqüilo, quase sereno... 

Os servidores principais eram recolhidos, mas quase nunca tinham nada. O que de fato lhes interessava eram backups e dispositivos móveis. Universidades tinham tudo bastante organizado e representavam o topo da carreira no departamento. Mas ele sentia saudades das varreduras maiores, explorar ruínas, entrar nos ambientes e imaginar como teria sido viver ali... Concluída a coleta, ele analisava os dados já no transporte.  Haviam recuperado bastante coisa e os filtros logo os levariam ao que interessava. Ali estava: Resistência e Rigidez de Compósitos Ligno-Celulósicos, Prof. Renato V. Rezende. Agora buscariam pelos arquivos pessoais em sua residência, a rara cota de ação que lhe restara... Era um local alto, agradável, simples e funcional, de onde se vislumbrava o vale do centro velho. Interessante como toda cidade do hemisfério sul tendia a crescer para o sul...  A área era dominada pelo que foram chácaras, mais propensa a animais ou desabamentos. Recolheram o que encontraram e voltaram ao alojamento, onde uma refeição quente e balanceada os esperava. Mas o pensamento de um daqueles javalis rodando suculento num espeto era o que o fazia salivar...

As primeiras horas do dia são sempre dedicadas ao corpo. Mesmo naquelas instalações temporárias simuladores são imprescindíveis. Cada qual à sua maneira, incorporam uma segunda vida, de atleta. São tenistas, boleiros, bailarinos, acrobatas ou fundistas. São corpo, pulsação e respiração, dependentes daquela sensação, da endorfina, do prazer absoluto de estar vivo. Incrível como os antigos, tão logo deixaram de correr atrás da comida (ou para não virar comida) se acomodaram, sedentários. Univérsia entendeu que o corpo precisa da atividade e isso reduz custos coletivos. Vivendo mais e melhor o urbean custa menos e produz por mais tempo. A transferência de conhecimentos e experiências entre gerações de dá de forma mais efetiva. Corpo e mente no seu ápice, essa era a chave. Um urbean vive seis ciclos distintos, cada um em uma urbe diferente. Não são de nenhum lugar do planeta. São DO planeta, elementos de um todo, buscando na mistura de raças o melhor de cada uma para a evolução da espécie humana. Univérsia, um organismo de 100 Urbes coexistindo em harmonia. Adam ofegava, satisfeito. O que via no espelho lhe agradava. Aos sessenta e seis anos, prestes a iniciar o quarto ciclo, podia vislumbrar os primeiros cabelos brancos, mas ainda estava no auge de sua forma.

No material recolhido no dia anterior identificaram intensa troca de mensagens com um servidor local, uma pousada no centro da cidade, a uma quadra dos alojamentos. Adam resolveu checar. Havia a possibilidade de ter sido usado no processamento dos dados e poderia conter informações relevantes, o que significaria avanços no processo de aplicação da tecnologia. Nem precisariam dos transportes. Seria uma caminhada de poucos metros por área segura, mas mesmo assim o protocolo de segurança exigia equipe completa. Ali estava: Pousada do Meio – Eco Turismo. Ficava nos pavimentos superiores de um edifício estreito e comprido, a menos de 50 m da central telefônica, e oferecia boas condições de conectividade. Forçaram a porta de metal, subiram por uma escada e logo na recepção encontraram os dispositivos de rede. Seguindo os cabos encontraram no pequeno escritório do andar superior o servidor e os backups. Com a conclusão dos procedimentos a cargo de seu auxiliar, Adam pode enfim explorar o lugar.

 Os registros mostravam a averbação de uma adaptação para pousada com a construção daquele andar em 2013. Ecoturismo. Interessante... Àquele tempo se começava a valorizar o pouco de natureza ainda preservada. Bela vista, apesar de urbana. Imaginou aquilo à noite, com as luzes acesas, 300 anos atrás. Estava em uma área de uso comum, com a clássica churrasqueira. Praticamente todas as áreas de lazer das velhas cidades dessa parte do planeta dispunham de uma. O grande momento de confraternização entre os antigos era em torno dessas refeições...  Um longo corredor dava acesso aos quartos daquele pavimento, amplos, pé direito alto e mezanino com camas grandes e varanda. Absorto, detinha-se às vezes à entrada de um ou outro quarto. Adorava aquilo. Imaginava pessoas em momentos agradáveis... Desceu as escadas e seguiu pelo corredor de baixo rumo ao centro do quarteirão. Em sua extremidade funcionara a caixa forte de um banco, transformada posteriormente em estúdio de gravação. O lugar parecia mesmo ter acústica ideal. Uma caixa de concreto cercada de terra por todos os lados menos o que lhe dava acesso, com uma pesada porta encerrando o assunto. Como não havia cabeamento aparente e não era ponto de interesse, Adam, mesmo curioso, voltou dali. 

Já podia ver as escoltas conversando tranqüilas próximas à entrada. Um rapaz e uma moça no inicio do terceiro ciclo, urbeans jovens, entusiasmados com a nova fase, certamente a caminho de um destino turístico na próxima folga. Fariam sexo algumas vezes, se já não o houvessem feito. Mas não se envolveriam antes do ciclo apropriado, o que lhes renderia anotações. Univérsia tinha atingido níveis de excelência em contracepção e equilíbrio hormonal. A natureza da mulher fora, desde sempre, de concepções sucessivas, estratégia justificável diante da necessidade de crescimento populacional.  Os pesquisadores Urbeans estimularam a capacidade do corpo humano de “aprender”, e a mulher, gradativamente, passou a ter ciclos menstruais menos freqüentes até finalmente só ovular quando decide conceber. Só não se havia ainda logrado sucesso em solucionar a síndrome dos 120, na qual os órgãos humanos degeneram-se rapidamente, mas alcançara pleno funcionamento até os 119 anos, viabilizando a política pétrea do um por um, onde o casal deve aguardar um óbito antes de gerar um dos dois filhos que terá. Eventos pré-Atribulações como a revolução industrial e o acelerado desenvolvimento bélico reduziram a demanda por trabalhadores e guerreiros e abriram caminho para a integração da mulher ao mercado de trabalho. No ocidente e em algumas nações do oriente o crescimento demográfico diminuiu, mas o mesmo não se deu no restante do globo. Depois de lucros astronômicos com a exploração desses imensos mercados, os poderosos finalmente perceberam que o planeta não suportaria tanta gente por muito mais tempo. A ganância cega... Gnus teriam percebido antes a saturação de seu habitat... 

A feromonica escolta lhe acenou e desceu a escada, encaminhando-se à saída. Hora de voltar. Finalizariam os procedimentos e retornariam à urbe pela manhã. Desligando a luz de seu capacete, Adam deu uma ultima olhada no lugar.   Não imaginava que o que estava por acontecer mudaria os rumos da história... Lá ao fundo do corredor agora escuro, uma coisa lhe chamou a atenção. Uma luz tênue, intermitente. Haveria alguém esquecido ali algum equipamento? Precisava conferir. Próximo da porta do antigo estúdio encontrou um artefato pequeno, pouco maior que um anel, em metal trabalhado, ouro provavelmente, com inscrições para ele desconhecidas em torno de uma gema azul.  Poderia jurar que não estava ali minutos atrás. Não lhes era permitido colher souvenires, nem era essa sua intenção, mas aquele objeto lhe parecia tão fora de contexto que resolveu examiná-lo melhor. Segurou-o na palma da mão, e ao aproximá-lo dos olhos a gema brilhou e lhe “sussurrou”, gutural: - Adam guarde este dispositivo em sigilo. Faremos contato.

Clichê
E a rental de Kings um dia caiu. E tinha lá um prim para retornar. Rotina. TP, reset, retornar prims. Só não era rotina um objeto dele. Anos residindo ali, nunca rezzara nada... Ari evitava retornar objetos pela land, onde a ocorrência de “database missing” era maior. Foi até a casa, bateu os olhos, mas a caixa transparente só apareceu na seleção massiva, canto oposto da rental. Nome: “Para Grana Kidd”, seu conhecido alt. Na descrição a key de Grana, no conteúdo um “give contents to key by touch” script, um note e um objeto. Esperto! Kings sabia que ele jamais clicaria em um objeto assim. O velho conselho de nunca aceitar doces de estranhos no SL se intensifica com o passar dos anos e acumulo das funções. Logando com Grana, ele clicou no objeto e recebeu o conteúdo.  Se o note não fosse endereçado ao seu apelido RL ele teria parado ali mesmo. “Tank, quero lhe propor trabalho. Um contrato vitalício como Construtor. Os pormenores estão no objeto em anexo e certamente lhe deixarão surpreso”. 

Não pode conter a sonora gargalhada... Quem seria? Com certeza algum amigo RL, de sacanagem. Levantou-se, afastando abruptamente a cadeira. Uma água. Voltou ao PC, marlboro atrás da orelha, respondeu Mis, consultou saldo, fez pagamentos, e terminada a rodada de trabalho voltou à diversão. Aquela caixinha para ele já era a grande piada do dia. Quem ficaria anos pagando uma Smart só pra fazer cama pra uma brincadeira? Iria descobrir e era já. 

Foi ao inventário de Grana e rezzou o objeto. No conteúdo um note dizia: “Sei que você está estranhando tudo isso, mas preciso de sua total atenção. Estou lhe passando o nome de um AV e a senha. Em seu inventário encontrará notes com novas instruções. Os lindens que estão lá são seus”.Acendeu o marlboro. Saco! Jamais acessaria o tal AV de casa. Arriscar seu IP? Aquilo tinha cara, cheiro e gosto de trojan. Considerou a possibilidade de uma lan. Aff, baixar viewer, PC lento, cadeiras e teclados imundos... Sabia que teria que ir à rua, era questão de saber quando. Detestava sair naquele horário, pico de movimento na Smart. Também não andava muito a fim de gente. Mas tinha o banco, ah o banco... Ok, ok, muito motivo pra um ermitão só. Traçou o roteiro enquanto consultava o espelho. Caixa, BB, lan, bar do Marcelo, café & cigarro. Bora...  

Mas não foi bem assim...  “só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto mais embaixo, bem diverso do que em primeiro se pensou (…) o real  não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia…” (Guimarães Rosa,Grande Sertão Veredas - Nova Fronteira RJ). 

Sempre, isso sempre... Logar de lan era um parto. Mas nasceu um bruto! O saldo lhe saltou aos olhos: L$ 150.000k. Checou os logs, lindens limpos pagos com paypal. Mas o que o impressionou mesmo foram os notes: Sua agenda para os próximos anos, que incluía viagens, aquisições de propriedades e obras, a senha de um cofre bancário em Bulle, Suíça, não por acaso uma cidade que ele conhecera, e resumos muito bem fundamentados sobre tudo o que sempre conjecturara. Bildeberg, illuminati, ciências ocultas, o Sagrado, o maldito, vampirismo... Vampiros! Dados, datas, nomes e organogramas, provas irrefutáveis de que algumas das teorias conspiratórias clássicas não eram assim tão teóricas, mas parte da maior de todas as conspirações: a Nova Ordem Mundial. Recuperado da surpresa, estranhamente não titubeou: Criou um novo AV e transferiu os lindens e notes pra ele. Limpou cache, deslogou, desinstalou o viewer e resetou o PC “acidentalmente”. Pagou a lan em dinheiro e saiu dali grato pelo descuido da atendente que não lhe solicitou dados pessoais. Algumas providências deveriam ser tomadas antes de prosseguir com aquilo. E a primeira seria mudar o percurso cuidadosamente traçado ao sair de casa. Não precisava mais do café, mas de um Domecq, ou de vários...

Acordou as sete, como de costume. Ligou o PC, café, banho, resetou a Smart. Na TV a virada do Timão no Flamengo. Liedson rules! Lembrava vagamente daquilo, em meio ao embaço da amnésia etílica. Traços de um sonho doido lhe martelavam a memória. Precisava parar de assistir documentários e de uma boa hora de esteira. E foi exatamente onde as fichas começaram a cair. Havia mesmo criado o novo av, nome e senha lhe vinham à cabeça. Aquilo mudava tudo... Todos os seus valores, 44 anos, buscando prosperidade como seus antepassados buscaram a caça. O sentido de sua vida não seria mais sobreviver, mas interferir. E sua reação foi fria, objetiva, como se em toda a sua vida se preparasse para aquele momento. Instalou um aplicativo de comando remoto no PC, jogou roupas na mochila, sacou um dinheiro e foi para a rodoviária. Nem carro nem cartão. Em São Paulo hospedou-se no centro velho e comprou um note na Pajé. Passou o final de semana em cybercafés, criando uma intrincada rede de avs e negócios SL, diluindo os lindens de forma que, durante os próximos anos, gradativa e legalmente convergissem aos seus próprios negócios. Logava Ari em casa, onde, para todos os efeitos, estaria entregue a um de seus freqüentes surtos criativos... Terminadas as providências iniciais retomou sua rotina. 

No verão seguinte esteve na Suíça francesa por duas semanas com um grupo de bossa nova, tocando em eventos periféricos do festival de Montreux.  Foi a Bulle nos últimos dias. A pequena cidade do canton de Friburgo era uma pintura! Vivera alguns meses ali aos 19 anos e andar novamente pela rue de Gruyères lhe parecia surreal. Com francês ainda sofrível, dirigiu-se ao atendente, não sem certa tensão. No cofre as instruções: Deveria adquirir uma área na Cidade dos Gigantes, conhecida por ele como Cânion Itanguá, entrada Itapeva do Escarpamento de Furnas, formação geológica formidável que se estende até as portas de Curitiba, e construir ali instalações subterrâneas, alojamentos e um dispositivo que se utilizaria do alto teor de quartzo dos enormes paredões de arenito devoniano para amplificar sinais que confundiriam radares, câmeras e scanners. Um escudo! Ahh, ta! Ocultar todo um canyon de uma eventual Nova Ordem Mundial, ou do próprio Anti-Cristo! Precisaria de um plano de saúde...

Ainda no cofre, os números e senha de uma gorda conta em Geneve, projetos, hds com passagens que os livros de história se “esqueceram” de nos contar, alguns milhares de euros e, claro, uma caixa de madeira. Não ficaria surpreso se encontrasse ali uma arma ou mesmo o santo graal, mas era um cristal vermelho delicadamente lapidado, a chave de ativação do escudo. Como no projeto do dispositivo encontrasse os brasões dos três clãs vampíricos, concluíra que eles haviam fornecido a tecnologia e o “Sr Clichê” por trás daquela pantomima zerozeroseteana, a chave. 

Uma aliança insólita entre humanos e vampiros contra um mal comum! Surpreendente... Sempre entendera vampiros como analogias a sugadores de energia, apesar de pertencerem ao imaginário popular em quase todas as culturas. Na bíblia não há referências explicitas a eles, e conjecturas de que Caim teria sido o primeiro para ele não passavam disso: conjecturas. Tampouco o material recebido trazia esses esclarecimentos, apenas alertava sobre sua existência, inclusive no SL.  Pelo menos uma questão primordial estava esclarecida: Ele não era nenhum salvador ou criatura dotada de poderes especiais (muito embora seu ego pudesse discordar...), apenas estava no lugar e tempos certos, tinha alguma noção do contexto e não pertencia a nenhum clubinho VIP de postulantes a donos do mundo. O fato de terem escolhido o Second Life para fazer contato significava que o metaverso ainda era uma área relativamente livre da influência Illuminati. Aquele trabalho estava começando a ficar interessante, e definitivamente estava decidido a aceita-lo, mas não sem um toque pessoal...

Despertar
Adam, atônito, mal podia acreditar naquilo. Era um dispositivo de amplificação de ondas cerebrais. Isso mesmo, telepatia! Imperceptível aos scanners de Universia. Havia alguém lá fora e era sua obrigação investigar, mas guardaria segredo por enquanto. Mesmo porque se reportaria a quem? Estava no comando... Naquela mesma noite foi estabelecido o contato, certamente a mais estranha “conversa” que já tivera. Deveria retornar à pousada em segredo e abrir o estúdio, onde encontraria mais instruções. Aquilo seria impensável, quebra total dos protocolos, “Caminha reto e vigia”, era a orientação de Univérsia. Deveria dividir a informação com alguém, e a decisão natural recaiu sobre a compenetrada comandante das escoltas, Camylla Inglewood, que reagiu com seu característico equilíbrio. Iria com ele e guardaria sigilo inicialmente, mas tudo constaria de seu relatório, frisando a palavra relatório com o olhar desconfiado que Adam já conhecia. Sabiam o que estava em jogo. Uma situação daquelas, somada às anotações que ele possuía, seria fim de carreira. Teria sorte se fosse convidado ao retiro precoce, pois desajustes recorrentes geralmente remetiam a penas capitais. 

Não foi difícil justificar o pequeno passeio. Um homem e uma mulher, buscando os remotos do acampamento sob aquele luar não deixava de ser uma situação aceitável. O rangido da velha porta de ferro se abrindo ecoou pelo corredor. Camylla à frente, sentidos aguçados, penetraram no breu que levava ao estúdio. Detiveram-se diante da porta trancada, e ao forçar a maçaneta ela sentiu uma leve picada que a fez retirar instintivamente a mão, em cuja palma uma rubra gota de sangue brotava. Ao inspecionar a maçaneta teve ele próprio sua mão picada, ouviram um leve ruído, uma luz se acendeu e a porta, hermeticamente fechada, se abriu, revelando um enorme CPD e uma mesa, e sobre esta um monitor, uma caixa de madeira e uma garrafa de Domecq. Entraram intrigados, a porta se fechou e o monitor se iluminou, apresentando uma contagem regressiva. Nada explodiu, mas o mundo que conheciam ruiu diante da imagem de um sujeito e de sua narrativa.

Criaturas
Foram tempos ainda piores que a Revolta Anarquista ou a Inquisição. Com a redução drástica da população humana e um sistema de controle absoluto, Univérsia derrubou de vez a Máscara, tornando a presença vampírica nas Urbes inviável. Apenas o Mentor, sua cúpula e os comandos de extermínio sabiam da existência dos vampiros que, reduzidos aos antigos centros, foram sistematicamente perseguidos. Nenhum dos Antediluvianos sobrevivera e os poucos que restavam eram desarticulados e viviam nas sombras, migrando de cidade em cidade conforme avançava o programa de reciclagem. Mas a aliança firmada três séculos antes, embora tênue, se mantinha. Haviam sido apanhados pela grande armadilha do Construtor, que prevendo a intenção vampírica de romper a Aliança tão logo fossem ativados os escudos do Refúgio, selou a chave em uma câmara protegida, que só se abriria a um humano vivo com seu próprio DNA. Obrigou assim os três poderosos clãs a protegerem seus herdeiros até que uma oportunidade se apresentasse. 

Por duas vezes e sem sucesso Sabá, da impetuosa Biahs2, havia tentado forçar a ativação raptando herdeiros do Construtor, o que revelou refugios vampiricos e causou reação dos comandos, com pesados custos às fileiras vampíricas. Kika Poli, a líder Camarilla, empenhou-se em mantê-la longe das Urbes com o suporte dos Independentes, de José Poli, que entenderam não haver alternativa. Deveriam manter-se unidos, vigilantes e ocultos até dia da vingança, em que dariam ao Construtor o troco por séculos de espera. Desde a chegada de Adam à Cidade da Chave a movimentação vampírica fora intensa. Sabiam que era ele, apesar do cuidado de Univérsia em apagar as linhas genealógicas pré-atribulações. Era hora.  Finalmente poderiam sair das sombras e teriam um refugio para planejar o restabelecimento da Máscara ou de seu velho estilo de vida. Plantaram o dispositivo de comunicação e ficaram esperando...

Ação
Entenderam a razão do brandy e já estavam adiantados na garrafa quando conseguiram finalmente articular uma conversa. Amavam Universia e se sentiam parte da primeira experiência realmente positiva da humanidade. Não era fácil descobrir que tudo não passava de uma conspiração sórdida que assassinara bilhões de pessoas para redesenhar o planeta. Universia era fruto de uma conspiração dentro de outra. Depois de dispararem os gatilhos das Atribulações, na sexta-feira 13/10/2097, 790 anos após o golpe de Felipe o Belo nos Templários, Illuminatis mundo afora receberam, ao invés de vacinas, doses do próprio vírus, tornando-se as primeiras vitimas e propagadoras do plano sórdido que levaram séculos para tramar...  

Precisavam se refazer do choque e agir rápido. Pelas câmeras de vigilância viam o local cercado por seus novos "amigos". Antes de formatar o velho banco de dados, Adam copiou seu conteúdo. Agradecendo ao Construtor, o que pensava em tudo, saíram serpenteando, as luzes dos capacetes parecendo olhos brilhantes, por um túnel subterrâneo que os levaria à praça central, logo abaixo dos alojamentos. Minutos depois já se encontravam num transporte rumo à segurança da Urbe. Os 3 Clãs se dirigiram imediatamente ao Refúgio e no dispositivo de ativação do escudo notaram novas reentrâncias, semelhantes às da porta do velho estúdio. Perceberam que as surpresas do construtor ainda não haviam terminado. Além da chave precisariam também de seu DNA para ativar aquela que já começava a ser conhecida como Smartia, associação do nome do herdeiro com a astúcia de seu antepassado...

Trabalharam discretamente. Semanas mais tarde a explosão sobre águas profundas de um transporte turístico vitimaria 18 escoltas, dentre elas, a oficial Camylla Inglewood.

Nas folgas Adam fazia vôos solo às cidades que reciclava, registrando imagens para seus relatórios. Foi assim que os apanhou: em pleno ar. Saíra da Urbe 32 e só pousaria no acampamento Itapeva, conforme o plano de vôo. Haviam sincronizado as rotas e treinado o arriscado salto exaustivamente. Um a um os 18 entraram pela abertura superior do transporte, desvencilhando-se dos planadores. Haviam sofrido o que sofreram Adam e Camylla, e entendido que não havia outra atitude a tomar. Também eles tinham suas anotações e por essa razão foram contatados. Um grupo de desajustados a menos para constranger a grandeza de Universia. Saltaram para um novo mundo. Vinha do alto a esperança humana de conquistar seu lugar em Smartia e preparar-se para o momento em que revelariam os segredos da Grande Farsa. 

Adam pousou exatamente sobre a abertura do túnel do Construtor e dirigiu-se à sala de comando, enquanto sombras deslizavam para dentro do túnel, uma serpente de muitos olhos... Após reportar o pouso, vistoriou as atividades do dia. Estavam adiantados. Logo encerrariam os trabalhos ali e partiriam para outra cidade. Recebeu a noticia da queda do transporte, sem sobreviventes. Alegando uma indisposição ele se recolheu ao alojamento, pedindo para não ser incomodado. E não seria, todos entenderam a gravidade da noticia. 

Precisava correr, tinham apenas algumas horas. Selando o túnel atrás de si, Adam os encontrou no estúdio. Haviam secado o Domecq, em silencio, observando pelas câmeras os vigias vampiros do lado de fora. Descendo uma escada chegaram ao pavimento inferior, onde encontraram os transportes. Quatro Humvees, veículos de combate pré-Atribulação perfeitamente conservados. Abasteceram, lubrificaram, testaram os motores e tomaram suas posições, armados até os dentes pelo arsernal do Construtor. Esperaram a partida do próximo transporte, cujo ruído lhes possibilitou uma saída discreta. Os 20 km até Smartia levaram horas. Haviam treinado a condução dos veículos em simuladores, mas as estradas praticamente desapareceram, e a topografia da região muitas vezes exigia enormes contornos. Estavam alertas, excitados. Mesmo habituados aos riscos do campo, jamais haviam feito operação alguma sem suporte aéreo, muito menos em um covil de vampiros. Sabiam que o Construtor lhes preparara instalações fortificadas e teriam que alcançá-las a qualquer custo logo na primeira tentativa. 

A chegada a Smartia foi tensa. Os clãs vampíricos estavam presentes em muito maior numero. Quatro enormes plataformas muradas destacavam-se na neblina, três delas com brasões vampíricos. Rumaram para a quarta a toda velocidade e irromperam pelo portão sacolejando escadaria acima para dela tomarem posse. Sem qualquer chance de reação, os vampiros a cercaram, ameaçadores. Camylla preparou a defesa para a iminente carga, que não veio. Tentavam entrar, mas sem sucesso. Era terreno santo, outra das surpresas do Construtor... 

Superada a aguda fase inicial restava ativar o escudo, cujo dispositivo ficava em uma câmara central, subterrânea. O acesso do pátio central estava tomado por seus novos vizinhos. Notava-se a hostilidade entre eles. Séculos de aliança forçada os deixaram sedentos para expressar sua rivalidade de forma mais enfática. Ninguém falava. Quatro grupos assustadores se observando a distancia e calculando o próximo movimento. E ele foi Urbean. Cada uma das plataformas dava acesso a uma rede de túneis que levavam à câmara central. Entraram por ela e notaram também os clãs desaparecendo pelos subterrâneos.  Chegaram a uma parede com inscrições estranhas e uma comporta, que não constavam dos projetos do Construtor e analises mostraram por trás dela um compartimento com milhões de litros de... água. Certamente para inundar os túneis em caso de necessidade, mas isso seria inócuo diante daquela vizinhança, a menos que a água fosse...benta! Camylla instalou um explosivo na comporta e entregou o detonador a Adam. 

Na câmara de ativação os quatro grupos fizeram o primeiro contato mais próximo, mas não atacaram. Decidido, Adam caminhou ao dispositivo, leve picada, sangue, chave. Subitamente, do centro elevou-se um intenso facho de luz e sentiram leve tremor sob os pés. Estava feito. Pela primeira vez em três séculos Univérsia teria um ponto cego no planeta. Acabara de nascer Smartia, um refúgio aos que anseiam por escolher seu próprio destino. O livre arbítrio, dádiva divina à humanidade, estava restabelecido, e seria partilhado com as raças que ali conquistassem seu lugar. Um momento de jubilo, e comemoraram da forma que conheciam: Lutando.

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